A Câmara dos Deputados aprovou
um teto para despesas públicas; o apoio para cortar gastos em tempos de vacas
esquálidas é quase intuitivo. Depois do convencimento de que há dinheiro
público demais, saindo para os ladrões, aumentar despesas governamentais, em
plena crise econômica, pareceria absurdo. Segundo defensores do novo regime
fiscal, o que muda é o ritmo de incremento dos gastos e quem e como define
prioridades. Nos próximos 20 anos, os orçamentos para a saúde poderão
hipoteticamente dançar aos compassos do miudinho ou saltar sob um funk
pauleira. No ano que vem, haverá um pequeno incremento, até os mais austeros
reconheceram que a elevação dos recursos da Saúde de 13,5% para 15% da receita
líquida não comprometeria o andamento da economia.
Depois, será tempo de murici,
cada um cuidando de si. Saúde, educação, ciência e tecnologia, cultura,
esportes, entre outras políticas sociais, disputarão fatias de um fundo público
diferente do atual. O valor dos gastos com políticas públicas não será a
diferença entre o que se arrecada com impostos e contribuições e o pagamento de
encargos e resgate da dívida. O teto ficará fixo, variando discretamente em
torno de uma inflação supostamente controlada, e a eventual elevação de
receitas (se houver crescimento econômico, redução das taxas de juros, aumento
de investimentos e empregos) será utilizada para pagar a dívida. O Poder
Legislativo renuncia da função de formular políticas e coordenará a disputa
pelas sobras de recursos.
Opositores das medidas
restritivas questionam três âmbitos do redirecionamento da política fiscal. O
primeiro refere-se à unilateralidade, consubstanciada em passar a tesoura em
ações essenciais para a reprodução da vida e inserção social, sem cogitar ampliar
receitas, sequer se referir às desonerações fiscais. O segundo domínio de
interrogações concentra-se na impossibilidade de impor teto para obrigações
previdenciárias estabelecidas, que serão despesas crescentes durante os dez
próximos anos. Ainda que se aprove a reforma da Previdência, o montante a ser
dividido para as demais políticas sociais será necessariamente menor. E, por
fim, a completa ausência de debates e esclarecimentos sobre as consequências,
inclusive imediatas, da obtenção de maioria para aprovação da PEC 241. Os
preços da governabilidade foram hiperinflacionados. Custa muito caro tornar o
Ministério da Saúde um posto avançado da base parlamentar do governo, modelo
recentemente replicado no Instituto Nacional do Câncer.
Pesquisas de opinião
realizadas este mês apresentam resultados opostos em relação aos limites de
gastos públicos. A da Confederação dos Transportes/MDA confirma a saúde como
principal prioridade para 60,6% dos entrevistados e pouco conhecimento sobre a
PEC 241: apenas 40,9% ouviram falar do teto para as despesas públicas e nesse
subconjunto 60,4% aprovaram a medida. Na conduzida pela CUT/Vox Populi, a
contenção das despesas com saúde, educação e assistência social por um prazo de
20 anos e aumento de acordo com a inflação foi rejeitada por 70%. Seja lá como
se absorva ou conteste a validade dessas informações, é plausível inferir que
ser favorável à punição da corrupção não autoriza manter ou aumentar taxas de
mortalidade infantil e desigualdades de acesso às ações diagnósticas e
terapêuticas.
Os críticos à Constituição de
1988, do pacto que vincula impostos a melhores condições de vida e saúde, não
deveriam pular a parte da real situação do setor e o pagamento de tributos por
toda a sociedade. A saída via planos privados individuais para quem puder pagar
só combinaria com renda alta, tributos reduzidos, mercados competitivos,
irrelevância de pesquisas e inovações para a qualidade e prolongamento da vida
e inexistência de doenças graves e prolongadas, como obesidade, autismo, demências,
arboviroses. Objetivamente, os melhores padrões de saúde dependem de
investimentos públicos. A crise econômica também afeta empresas privadas. A
falência da Unimed Paulistana e do Rio de Janeiro, a queda do número de
contratos de planos de saúde decorrente do desemprego e mensalidades
reajustadas acima da inflação pesam nas estreitas costas do SUS.
O sacrifício da saúde pública
e da ciência e tecnologia foi questionado pela comunidade científica
internacional. As conceituadas revistas “The Lancet” e “Science” publicaram
depoimentos sobre os possíveis “desastres” da PEC 241, regressão de padrões
alcançados de morbi-mortalidade e descontinuidade de pesquisas nacionais
estratégicas. Decisões tomadas em fóruns reservados, empresariais, podem
acalmar instantaneamente certos mercados, reafirmar credibilidade junto aos
credores. Mas prejudicar uma geração inteira apavora quem tem por ofício
ensinar, interrogar, buscar reunir evidências, equacionar problemas e testar e
propor soluções. Um país que deixa de considerar mudanças demográficas,
ocupacionais, sociais e ambientais na definição dos orçamentos para a saúde
perde definitivamente integridade.
Ligia Bahia é professora da UFRJ