As campanhas eleitorais deste ano estão sendo conduzidas
por duas inquietações principais da população urbana, por efeito direto da
atual crise econômico-política vigente no Brasil: a segurança e a corrupção
política.
A moradia
como condição de saúde, entretanto, um desafio a ser prioritariamente enfrentado
por qualquer política pública municipal que tenha por objetivo “ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus
habitantes” como determina a parte final do artigo 182 da Constituição Federal,
está sendo tratada quase exclusivamente como um problema ligado à execução do
programa Minha Casa Minha Vida. O espaço urbano onde o direito de moradia é
exercido, por ser dividido conforme a renda das pessoas, fica inacessível a um
grande contingente de famílias pobres, submetidas a se abrigarem onde e quando
se abre uma possibilidade para isso, isoladas geralmente em ribanceiras, áreas
de risco, cortiços e alagados.
A
indivisibilidade e a interdependência do direito à moradia e à saúde, dois
direitos humanos fundamentais sociais previstos no artigo 6º da nossa
Constituição Federal, já tinham sido proclamadas na Conferência da ONU, Habitat
II, realizada em Istambul em 1996, quando a OMS (Organização Mundial da Saúde),
lá presente, advertiu os governos dos países ali representados, sobre o fato de
a grande maioria das doenças humanas infecto-contagiosas serem criadas dentro
de casa, se é que se pode chamar de casa um conjunto mal equilibrado de
lata, papelão, caliça, sobras de madeira retiradas de outras obras.
Entornos
urbanísticos insalubres, subhabitações situadas em zonas mal ou não servidas
por serviços públicos essenciais a uma vida digna, como água, energia,
saneamento básico, necessitam ser tratadas com a urgência e a necessidade
próprias da sua interdependência com outros direitos humanos fundamentais, como
educação, transporte, trabalho e lazer. Isso tudo se a alimentação estiver
mesmo garantida prioritariamente sob pena de todo o resto nem poder ser
cogitado.
Sobre
tudo isso, a Conferência da ONU Habitat III, prevista para ser realizada em
Quito entre 17 e 20 de outubro próximo, vai permitir fazer-se uma nova
avaliação das garantias devidas ao direito a moradia em todo o mundo, refletido
em toda a indivisibilidade e interdependência com os demais direitos. Sem elas
ele perde chão e teto, essa condição se constituindo, portanto, em tema
obrigatório das atuais campanhas de candidatas/os habilitadas/os à eleição de 2
de outubro próximo. Obrigatório porque as dificuldades de solução para a
satisfação de uma necessidade vital como a moradia, indispensável à própria
vida das pessoas, já estão armadas de um poder crescente, ideologicamente
sustentado pelo neoliberalismo e praticamente invencível.
Coincidência
ou não, duas revistas publicaram recentemente o tamanho dos desafios atualmente
impostos às administrações públicas municipais pelo conflito de ideias e ações
aí presentes, tanto para atender demandas de moradia quanto de saúde. O número
de Le Monde diplomatique deste setembro entrevistou Raquel Rolnik, que dispensa
apresentação, e ela não poupou crítica ao paradoxo sob o qual os municípios se
encontram hoje para implementar suas políticas sociais; e o número de
agosto da Revista do IHU (Instituto Humanitas da Unisinos) recolheu várias
opiniões sobre o “SUS, por um fio. De sistema público e universal de saúde a
simples negócio”.
Raquel
usa um bisturi afiado para descobrir o tumor infecioso responsável pela doença
permanente do direito de moradia não conseguir ser acessado realmente por todas
as pessoas sem teto: “O cenário hoje das prefeituras, principalmente das
cidades grandes, é de tudo muito terceirizado, nada é o próprio município que
faz. O município fica extremamente amarrado, porque a legislação toda que rege
o Estado, no Brasil, não deixa quem está no Estado fazer nada. É muito difícil,
muito difícil. Em nome do combate à corrupção, da fiscalização e do não desvio
de recursos, engessou-se totalmente o Estado. E o paradoxo é que isso não
acabou com a corrupção, pelo contrário! Isso matou a capacidade de ação do
Estado e privatizou-o para que este funcionasse como um veículo de
transferência de fundos públicos para as empresas privadas, que sustentam a
reprodução política das coalizões e dos mandatos. {…}. “É a democracia direta
do capital como diz Carlos Vainer.”
Não há
necessidade de se lembrar, pelo volume de recursos e pela urgência que a
implementação da política pública de moradia comporta, o quanto esse direito é
vítima desse engessamento.
Na
revista do IHU sobre o SUS, José Antonio Sestelo, vice-presidente da Associação
Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), no mesmo caminho da
privatização-terceirização, denunciado por Raquel Rolnik, expõe toda a
perversidade imposta pela lógica do lucro, até na seleção dos leitos de quem
necessita ou não internação hospitalar: “Exemplo disso tem sido a redução
sistemática de leitos de obstetrícia verificada em hospitais privados com
objetivo de assegurar a manutenção das margens de lucro projetadas pelos
quotistas controladores. As mulheres precisam dos leitos, mas a direção do
hospital é pressionada para maximizar a utilização do ambiente assistencial por
procedimentos rentáveis como a venda de órteses, próteses e materiais especiais
e a quimioterapia oncológica ambulatorial.”
É
humanamente impossível retardar-se esse enfrentamento. As campanhas eleitorais
de candidatas/os a exercerem mandato em Legislativos ou Executivos municipais
não podem ignorar mais problemas tão complicados como os de moradia e
saúde, exigindo resposta e solução urgente. Pelos diagnósticos de quem os
conhece bem, é melhor confiar num debate aberto com as/os vítimas de um modelo
paradigmático que está se impondo ao direito à moradia e à saúde.
É
preferível ouvirem-se as/os sem-teto e as/os doentes pobres, empoderando-se uma
democracia realmente participativa, do que se conformar com respostas e ações
excludentes da possibilidade de essas vítimas serem ouvidas, assim traindo de
novo a fidelidade esperada das promessas motivadoras de voto no próximo 2
de outubro.