08/04/2016
Um novo soro, criado por cientistas brasileiros, promete
ser o primeiro do tipo do mundo a combater especificamente o veneno de abelha
para os casos mais graves.
Estima-se que mais de 15 mil pessoas sofram ataques de
abelhas por ano no Brasil –8% do total dos ataques de animais peçonhentos.
Dessas pessoas, 140 morrem em decorrência das picadas e outras podem ter
complicações renais e seu estado de saúde geral agravado.
Curiosamente, a forte dor característica das picadas foi
um motivo que impediu o desenvolvimento anterior da vacina. Os equinos são os
animais escolhidos para a produção desse tipo de soro, mas são muito sensíveis
à dor. "São bichos que literalmente morrem de cólicas", diz Rui
Seabra Ferreira Jr., veterinário e professor da Unesp.
O pulo do gato veio durante as pesquisas de Ferreira Jr.,
há cerca de 15 anos, quando veio a ideia de remover do veneno a porção
responsável pela dor –deixando só as toxinas que causam prejuízo da função
renal, por exemplo.
Essa nova fração pode ser inoculada nos cavalos, que
então produzem anticorpos contra essas moléculas. Dependendo do animal podem
ser extraídos até 25 litros de sangue por inoculação (veja o processo no
infográfico).
Antes de a pesquisa chegar na fase clínica, houve testes
com camundongos, coelhos e carneiros –alternativas caso a inoculação com
cavalos não funcionasse. O soro, antes de ser envasado é purificado e tratado
quimicamente para minimizar efeitos colaterais.
VACINA ABELHA
TESTES
Os testes em humanos devem começar nos próximos meses. A
vacina estará disponível em três centros de pesquisa: um em Botucatu (onde fica
a instituição sede da pesquisa, a 238 km de São Paulo) e outros dois em Tubarão
(SC) e Uberaba (MG).
O processo basicamente consiste em aguardar que pessoas
sejam picadas para serem testadas. E nada impede que pessoas de regiões
próximas sejam levadas a esses centros para serem tratadas.
Na primeira etapa, que deve levar cerca de um ano, a meta
é reunir 20 casos de envenenamentos para serem tratados com o soro antiapílico
(de Apis mellifera, o nome científico das abelhas). Será testado o ajuste de
dose e verificada a segurança do composto em humanos.
Se funcionar como se espera, o soro deverá ser testado,
em uma nova fase de pesquisa clínica, em 300 pessoas em todo o país para a
avaliação de sua eficácia. Como não existe nenhum outro tratamento específico
para envenenamento de abelhas –apenas anti-inflamatórios e antialérgicos são
administrados–, se tudo der certo, pode ser que a aprovação venha logo após
esses testes, especula Ferreira Jr.
A empreitada envolve principalmente a parceria do Centro
Virtual de Toxinologia (Cevap) da Unesp e o quase centenário Instituto Vital
Brasil (RJ). Os investimentos no projeto são 100% públicos
Esse pode ser ainda primeiro soro, de qualquer tipo, aprovado
em testes clínicos no país. Os tradicionais soros contra venenos de serpentes,
escorpiões e aranhas são heranças de um passado onde não havia regulamentação
tão intensa quanto a de hoje. Será também o primeiro soro antiveneno a ser
avaliado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, criada em
1999).
Ferreira Jr. se diz um entusiasta da pesquisa porque o
soro é resultado de estudos realizados na própria universidade. A patente do
produto deverá gerar receitas para a Unesp no caso de exportação para países
onde as abelhas são um problema.
CAOS APIÁRIO
Como as temidas abelhas africanizadas, que deram início a
ataques e mortes por aqui, se espalharam pela América? A Unesp fez parte dessa
história.
A produção de mel no Brasil na década de 1950 ia mal. O
geneticista da Unesp Warwick Kerr foi à África pesquisar as produtivas colônias
africanas, também conhecidas por sua agressividade (ou alta defensividade, já
que elas só picam aqueles que se aproximam demais).
De lá, Kerr trouxe dezenas de rainhas para ver se a
produtividade poderia ser reproduzida em terras paulistas (no campus de Rio
Claro da Unesp). Por um infortúnio, rainhas escaparam e se reproduziram com
zangões da versão europeia do bicho, já disseminada no país.
A alta produtividade e eficiência das colônias híbridas
–africanizadas– era notável. As abelhas dormiam mais tarde e acordavam mais
cedo e o tempo de desenvolvimento de um novo inseto era um dia menor: as
colônias europeias não tiveram chance.
"Foi algo sem precedente na história do planeta com
relação ao nascimento de uma nova espécie", conta Ferreira Jr. "A
tendência produtiva permaneceu, assim como a defensiva". (Felizmente, as
abelhas não saem caçando cavalos ou pessoas).
A tendência produtiva permaneceu, assim como o
temperamento. Apicultores foram atacados (antes, equipamentos de proteção eram
dispensáveis). Houve mortes. De certa forma, o soro da Unesp é uma redenção
histórica.
Em 1979, as abelhas africanizadas cruzaram o canal do
Panamá, mesmo tentativas de barreiras. Em 1986, chegaram no México e, em 1990,
nos EUA.
Em 1986, chegaram no México e em 1990 no Texas (EUA).
"Por isso nasceram filmes como 'Killer Bees!' [Abelhas Assassinas, de
2002]. Os americanos nos adoram por isso", brinca o veterinário.
Fonte: Folha On-Line