Marcio teve negada uma cirurgia para retirar um tumor no
cérebro. Luciene, obesa mórbida, uma operação para reduzir o estômago. A Walter
foi vetada uma radioterapia mais precisa.
Em comum, todos tiveram procedimentos negados pelos planos de saúde, recorreram
à Justiça e ganharam as ações.
Estudo da USP mostra que 92,4% das decisões judiciais contra planos de saúde da
cidade de São Paulo favoreceram o paciente. Em 88% delas, a demanda foi
atendida na íntegra; em 4%, parcialmente. A pesquisa avaliou todas as 4.059
decisões de segunda instância proferidas pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça de São
Paulo) contra planos coletivos entre 2013 e 2014.
Cerca de 60% dos paulistanos possuem planos de saúde —desses, 5,2 milhões têm
planos coletivos, que representam 83% do mercado.
A exclusão de coberturas foi a principal causa das demandas (47,6%).
O empresário Walter Carmona, 58, acionou a Justiça em 2014. Ele teve indicação
médica de uma radioterapia mais avançada (IMRT) para tratar um tumor de
próstata reincidente. O plano alegou que isso não estava no rol da ANS (Agência
Nacional de Saúde Suplementar).
O empresário entrou com ação judicial, e no dia seguinte foi concedida uma
liminar determinando a realização do procedimento. Depois, o TJ ratificou a
decisão.
"Eles [planos] só entendem a língua das liminares. Queriam que eu
aceitasse um tratamento inferior", afirma.
Carmona paga R$ 10 mil por mês ao plano (tem mulher, mãe e três filhos como
dependentes). O tratamento custou R$ 30 mil para a operadora.
MAIS VETADOS
Tratamento para câncer é o segundo procedimento mais vetado pelos planos
(15,6%), atrás das cirurgias (34%), segundo o estudo. Entre as terapias, a
radioterapia lidera nas negativas.
"O perfil de problema que leva à Justiça está em constante movimento e tem
a ver com lacunas da regulação. Antes, foi a Aids. Hoje aparecem câncer,
doenças cardiovasculares", diz Mario Scheffer, professor da USP e
coordenador da pesquisa.
Os planos de saúde dizem que muitos pedidos não estão previstos em contratos ou
na lei que rege o mercado. Os juízes, porém, estão levando em conta outras
legislações, como CDC (Código de Defesa do Consumidor), e súmulas do STJ
(Superior Tribunal de Justiça) e do próprio TJ-SP.
"A ANS tem resistido em aplicar os ditames do CDC, mas a Justiça tem
mostrado que isso precisa mudar", afirma Scheffer. A ANS diz considerar o
CDC na regulação.
Segundo o professor, é possível considerar as decisões do TJ-SP como
definitivas, pois questioná-las no âmbito do STJ esbarraria nas súmulas 5 e 7.
Elas dizem que a simples interpretação de cláusula contratual e a simples
pretensão de reexame da prova não enseja recurso especial.
A maior presença dos "planos falsos coletivos", formados por pequenos
grupos, leva ao aumento de ações judiciais no setor, diz Scheffer. Eles têm
menor poder de barganha, o que provocaria mais reajustes abusivos, exclusão de
cobertura e rescisão unilateral. A pesquisa não indicou, porém, qual é a fatia
deles no total de planos coletivos.
Quase um quarto dos que recorreram à Justiça pediu também indenização por danos
morais pelo sofrimento causado pela negativa do plano, e 59% dos usuários
tiveram sucesso. Os valores variaram de R$ 1.000 a R$ 500 mil.
Entre as decisões favoráveis por danos morais, 78% foram motivadas por exclusão
de cobertura. "Há uma sensibilidade maior ao sofrimento", diz a
advogada Juliana Ferreira Kozan, especializada na área.
Na sua opinião, a Justiça ainda se mostra reticente à condenação por danos
morais. "O usuário também teme perder a ação e ter que arcar com os ônus
da sucumbência [honorários do advogado pago pelo perdedor]", explica.
O estudo, financiado pela Opas (Organização Pan-Americana de Saúde) e pela ANS,
não avaliou decisões de caráter provisório, como liminares e tutelas
antecipadas.
ANS APOSTA EM MEDIAÇÃO
A ANS diz que tem evitado que muitas queixas de clientes de planos de saúde
cheguem à Justiça por meio de seu núcleo de mediação.
Para efeito de comparação, entre 2010 e 2014, o Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo proferiu um total de 37.877 decisões contra planos de saúde,
segundo estudo da USP —não há detalhamento dessas ações.
No mesmo período, o núcleo de mediação da ANS registrou 55 mil notificações de
clientes paulistas insatisfeitos. Em nota, a agência informa que a taxa média
de resolução das demandas atinge o índice de 85%
"A ANS vem se firmando, ano a ano, como o principal canal de
relacionamento com o usuário de plano de saúde."
Em 2015, diz a ANS, foram registradas 102 mil reclamações contra planos, com
uma taxa de resolutividade de 87,4%. "Isso quer dizer que, apenas no ano
passado, 89,1 mil beneficiários de planos de saúde tiveram suas demandas
resolvidas através da ANS, o que contribui para a diminuição da judicialização
não só no Estado de São Paulo, mas no país inteiro."
A agência informa ainda que está analisando as recomendações feitas pelos
pesquisadores da USP.
OUTRO LADO
A principal justificativa dos planos de saúde nos processos em que são réus é a
de que cumprem o previsto no contrato. Esse argumento é usado em 50% das ações
analisadas pelo estudo da USP.
Outras duas defesas comuns são as de que o procedimento negado não consta do
rol de coberturas obrigatórias da ANS ou de que a lei que rege os planos de
saúde ou resoluções da ANS permitem tal prática (33%).
Segundo Marcio Coriolano, presidente da Fenasaúde (Federação Nacional de Saúde
Suplementar), a maioria dos itens judicializados não se relaciona a
descumprimento de contratos, mas a pedidos sem amparo nas normas do mercado de
saúde suplementar.
"E as decisões judiciais têm a ver com uma visão mais social, que colide
com a própria regulamentação da ANS, ao arrepio das normas vigentes",
argumenta.
Para ele, o Código de Defesa do Consumidor, usado na fundamentação de 57% das
decisões judiciais no TJ-SP, não pode se sobrepor à lei que regula o setor
(9.656/98).
Coriolano discorda de uma das conclusões do estudo segundo a qual, por falha na
regulação, o Judiciário está tendo que arbitrar sobre essas questões. "Um
dos itens mais judicializados, o direito dos demitidos e dos aposentados, está
bem regulamentado pela ANS. Mas as decisões judiciais dão direitos que os
demitidos e aposentados não têm. Podem discordar da forma como que é feito, mas
não existe falha regulatória."
Pedro Ramos, diretor da Abramge (Associação Brasileira de Medicina de Grupo),
concorda. "Muitos estão indo para a Justiça buscar aquilo a que não têm
direito. O que está previsto no contrato ou na lei [do plano], não tem o que
discutir, tem que cumprir. Mas o que não está, não é possível. O sistema vai entrar
em colapso."
Ele cita uma situação que testemunhou recentemente. "Um executivo comentou
que precisava fazer uma determinada cirurgia cardíaca, mas que não está
prevista em seu contrato [com o plano]. Perguntei: 'por que você não adapta o
plano? [pagando a diferença do 'upgrade']'. Ele respondeu: Não precisa. Consigo
uma liminar e pronto."
Na opinião de Coriolano, a judicialização está "elitizando" o acesso
à saúde. "Quando alguém contrata um bom advogado e paga para ter acesso à
Justiça, ela tira o direito de outras. É mais grave no setor público, que tem
limitações orçamentárias. No setor privado, quem paga por isso é o
beneficiário."